domingo, 24 de agosto de 2014

Autoridades doutrinadas

Foto tirada da Wikipedia
Um certo astrônomo, que se diz filósofo, guru de certos expoentes midiáticos, os quais prefiro denominar de cães raivosos de mente anacrônica, constantemente denuncia a doutrinação marxista em nossas universidades.

Logicamente, escondido em sua caverna em território americano o astrônomo há muito não deve frequentar os corredores de algumas instituições brasileiras de ensino superior, se é que já frequentou qualquer corredor acadêmico em sua vida.

Aqui no Rio cito, por exemplo, o IBMEC, que não me parece apresentar qualquer influência da tal doutrinação marxista acadêmica. Contudo, tal circunstância pode ser observada em várias instituições pelo Brasil afora o que torna as histriônicas acusações do astrônomo uma evidente falácia.

Não bastassem as instituições que, sabidamente, rogam por uma agenda obviamente liberal, o que, por si só, já afasta a tal falácia do marxismo acadêmico, noto, no corpo docente de várias instituições que frequentei, não só para estudar, mas também para os mais variados eventos, um verdadeiro mosaico ideológico, típico de qualquer democracia.

Minha pós graduação (CCE - PUC-RJ), por exemplo, apresentava professores das mais variadas posições, desde aqueles que rogavam pelo enaltecimento do princípio da dignidade da pessoa humana e pelas compensações normativas diante do evidente poderio econômico dos grandes players do mercado frente ao cidadão até os que acreditavam em uma sociedade estritamente liberal e se mostravam um tanto quanto saudosos da influência da autonomia da vontade e, evidentemente, do alto poderio financeiro nas relações sociais.

Não notei má intenção em nenhum deles, mas tão somente as mais variadas visões e opiniões que permitem ao aluno, caso reflita e estude, formar um posicionamento embasado frente aos nossos dilemas sociais. Não faltam ao aluno interessado elementos para a formação de sua convicção, qualquer que seja ela. Logicamente, isso não funciona quando a criatura, de forma preguiçosa, se restringe aos histriônicos colunistas da mídia corporativa, cujas posições, caso observadas em companhia de um estudo prévio sobre as matizes políticas que dizem defender, se mostram enganosas, simplistas e contraditórias.

Os que acreditam, por exemplo, que o posicionamento radical dos discípulos do pretendente a filósofo representam a doutrina liberal, obviamente não estudaram o fenômeno.

Assim, evidente que o tal marxismo acadêmico é tão presente quanto o neoliberalismo e o liberalismo.

As várias autoridades que têm chamado para si os holofotes da repressão liberticida, todos detentores de diploma universitário, me parecem trilhar justamente o caminho inverso do marxismo, o que leva à justa pergunta: se nossas faculdades são dominadas por marxistas, onde estas autoridades estudaram? O que costumam ler? Que ideia fazem de uma sociedade justa? Não tenho resposta para isso, mas assisti fatos que demonstram que não há qualquer identidade com a luta de classes ou a universalização de direitos.

Meu espanto começou quando o comediante Rafucko anunciou que estava sendo intimado para prestar esclarecimentos devido às denúncias deflagradas por um dos aríetes do direitismo radical da revista Veja. Segundo o colunista, o comediante deveria ser investigado eis que estaria se utilizando de um manequim roubado da Toulon para fazer seu trabalho.

A resposta de Rafucko revela, não só a sandice a que a autoridade policial chegou, mas também a forma preguiçosa de trabalhar, eis que a mera observação do vídeo que teria dado origem à denúncia do cão raivoso demonstra que o manequim utilizado pelo Rafucko seria completamente diferente daqueles roubados da boutique depredada (que, relembre-se, foi condenada por utilização de mão de obra em condições análogas a de escrivão, fato que levou à radical ação destruidora).

Lamentável, assim, não só que a autoridade policial perca seu tempo lendo as sandices reacionárias do colunista, mas também que, ao trabalhar de forma preguiçosa e sem se aprofundar minimamente em sua investigação movimente a máquina administrativa sem motivo e intime um cidadão, tão cidadão quanto o reacionário sustentado pela Veja, à sua presença sem justo motivo. Preguiça mesmo? Ou apenas subserviência à ira conservadora? Acredito na segunda hipótese.

Não posso acreditar que a autoridade policial, detentora dos mais variados artifícios de investigação, não tenha acesso aos veículos de mídia independente que, claramente, demonstraram que não havia qualquer receptação criminosa no trabalho de Rafucko. O acesso a esses veículos é livre e irrestrito, suas publicações pululam de forma pública e constante, bastava ter o interesse de verificar.

Fora isso, o simples acesso ao site do comediante deixaria claro tal fato, o que me leva a crer que Rafucko foi intimado para depor devido a evidências obtidas única e exclusivamente através da Veja.

Infelizmente, tal comportamento foi reproduzido, por no mínimo duas vezes, o que me leva a crer não em um caso isolado, mas em uma doutrinação extremista a povoar a mente de nossas autoridades.

Uma delas, obviamente, se trata do teor da denúncia deflagrada pelo Ministério Público contra os "líderes" da baderna. Os trechos da denúncia que passaram pela minha timeline são arrepiantes. A luta contra o sistema vigente se torna uma evidência e conduziria à necessidade de investigação.

Não só os variados veículos que se pautam pela ideologia dos "líderes black blocs" são citados de forma generalista, mas também coletivos virtuais de cunho cultural e de entretenimento. Ao que parece, para nossas autoridades, basta ter um cheirinho de alternativo para que o indivíduo ou coletivo se torne suspeito. É o velho preconceito, a visão simplista que leva à revista constante do jovem negro, do cabeludo com cara de hippie, mas deixa passar o engravato com os bolsos lotados de papelotes de cocaína.

A acusação de quadrilha armada foi feita com base na arma particular do pai de um dos acusados, encontrada no ato de sua prisão. Armação, pura armação! Na falta de provas concretas, nossa ditadura cabralóide exuma técnicas de criminalização que, até então, se restringiam aos favelados.

O sectarismo, como não poderia deixar de ser, propaga a ignorância, ignorância esta que, ao final, veio a dar um tom tragicômico ao inquérito, eis que até mesmo o histórico anarquista Bakunin, falecido há várias décadas, se tornou objeto de investigação.

Não basta ser reacionário e conformista, é preciso cair no ridículo.

Outro fato estarrecedor se trata da negativa de liberdade provisória (decisão já revertida) ao ativista Fábio Hideki, de São Paulo.

Em sua decisão, o magistrado mencionada que Fábio e sua trupe, apesar de se dizerem contrários ao capitalismo, usam tênis Nike e I Phone, comportamento típico da "esquerda caviar".

Lamentável, assim, não só o sectarismo e a ignorância política do magistrado, que, pelo jeito, atribui a quem quer que conteste a nossa plutocracia a necessidade de pobreza,  isolamento social e mercadológico absolutos, mas também a comprovação de que é admirador do mais simplista e desonesto colunista da Veja.

Para o magistrado, provavelmente, os desvalidos que se virem, já que jovens de classe média que possuem, felizmente, dinheiro para se vestir e para adquirir um bem de consumo que hoje é algo trivial até mesmo entre as classes menos favorecidas, não têm o direito de clamar por igualdade e distribuição de renda. São hipócritas, falsos rebeldes, que no lugar de lutar por igualdade de direitos deveriam se restringir ao conformismo covarde que constrói os muros da separação social.

Cada macaco no seu galho! Os pobres que se batam com a polícia, com o Estado repressor e classista, já a classe média, obviamente, deve se ater aos seus problemas, se trancar em casa, blindar seu carro e ler a Veja!

Lamentável, assim, não que nossas autoridades sejam conservadoras, neoliberais ou liberais, mas que sejam radicais, sectárias e não tenham as mínimas bases para compreender a atuação de indivíduos que comunguem de ideias comuns em uma democracia.

As origens para esse comportamento são complexas. Mas a principal delas se deve à forma de acesso aos cargos de autoridade. Óbvio que o atual sistema, que exige dos candidatos anos de estudo em horário integral, afasta aqueles que, apesar de terem acesso à universidade, precisam se sustentar e não têm a chance de se manter em casa durante oito horas por dia para estudar.

Sinceramente, não conheço um sistema mais justo do que uma prova difícil, que obrigue o candidato a se dedicar. Embora a distorção aqui citada, que gera uma evidente elitização dos cargos de autoridade, seja de difícil reversão, confio que políticas de acesso às melhores universidades aos mais variados estratos sociais possam, com o tempo, reverter isso.

O incentivo à atuação científica, o livre acesso a material didático e, ainda, a obrigação de real experiência na profissão nunca se tornaram tão urgentes.

Espero que as cotas tragam um colorido diferente aos nossos gabinetes e que esses Juízes, no lugar de exumar sua histeria covarde frente ao ladrãozinho que sempre temeram, observem com mais cuidado os motivos e as circunstâncias que o levaram ao banco dos Réus. Que, no lugar de presumir a veracidade do trabalho de uma polícia que possui não só comportamento seletivo, mas também desonesto ao forjar provas ou criar circunstâncias para avolumar condenações, como se se portassem em um jogo onde tudo o que vale é o score (o tamanho da pena), inquiram, desconfiem e, se for o caso, condenem com isenção e imparcialidade.

Cá pra nós, um juiz que diz que black blocs são oriundos da esquerda caviar não é isento para julgar o caso, na verdade, não é isento para julgar qualquer caso que traga as diferenças sociais de nossa sociedade.

Precisamos, cada vez mais, de autoridades que tenham estado do outro lado e não trancados dentro de um apartamento com pavor do povo e, se não estiveram, que se munam de um mínimo de reflexão e imparcialidade, que compensem nosso sistema judiciário classista através da reflexão dos efeitos sociais da condenações que proliferam e entendam que  seu trabalho se reflete, diariamente, na forma de viver de todos os brasileiros.


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Destaque: manifestação de Rafucko quando chamado á delegacia: https://www.youtube.com/watch?v=hS8itzSy8IY

Rafucko comenta o caso em seu blog: http://rafucko.com/2014/04/25/rafucko-entrevista-policia-civil/

Outros links de interesse:

http://www.brasilpost.com.br/2014/08/07/fabio-hideki-livre_n_5659575.html

http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-07-12/delegado-diz-que-presos-pretendiam-cometer-atos-de-depredacao-na-final-da-copa.html

http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/quem-e-o-juiz-que-chamou-black-blocs-de-esquerda-caviar

Update de 15.09.2014, a realidade de injustiça social que envolve os concursos públicos: http://economia.ig.com.br/carreiras/2014-09-15/concurso-publico-e-uma-maquina-de-injustica-social.html