domingo, 13 de abril de 2014

A popozuda e os pensadores


Foto retirada dos arquivos do Jornal Extra
Rubens é um senhor distinto, como tantos outros que moram na zona sul carioca. Representa o melhor extrato de nossa sociedade. Conta quase sessenta anos de idade, mas prefere dizer que passou dos cinquenta. Está quase aposentado, vive atualmente de pequenos trabalhos de consultoria, fruto de décadas de experiência em sua área. Hoje, merecidamente, trabalha menos de quatro horas por dia, reproduzindo pareceres que, com muito esforço, elaborou ao longo dos incontáveis anos de suor.

Hoje tem orgulho de sua família e com horror se lembra da empregada que engravidou nos anos 80, enquanto sua mulher se recuperava da gravidez de sua filha. Felizmente, a favelada cedeu ao aborto, financiado por ele e feito na clínica de um amigo de infância. Tomadas as providências, Rubens pagou seus direitos e a demitiu e, agora, muito raramente se lembra desse episódio.

Não vê a hora de se aposentar definitivamente. Para isso, monitora seus investimentos com todo o cuidado. Os três terrenos, herdados de família, estão muito bem alugados, mas Rubens anda preocupado, pois os rendimentos dos  títulos de dívida pública que adquiriu, em breve ultrapassarão o prazo limite de isenção do imposto de renda e ele precisa achar uma solução, afinal,  não vai pagar imposto pro governo alimentar a vagabundagem dos nordestinos e favelados.

Sua expertise vem de uma época em que as pessoas trabalhavam duro, como ele, que repete orgulhosamente, sempre que pode, a narrativa de seu primeiro dia de trabalho, quando, aos dezoito anos, começou na área administrativa da transportadora de um amigo de seu pai. Lá, aprendeu que apenas com pulso firme a "paraibada" se torna produtiva. Esses ensinamentos ele reproduz à risca, quando se relaciona com a empregada, que, pasmem, tira os domingos de folga. Dá duro no garçom, no porteiro, no motorista de táxi e assim vai ensinando ao povinho os valores que gente de bem deve cultivar. 

Hoje é domingo. Rubens acorda e percebe, com orgulho que Vera, sua mulher (essa sim, mulher de verdade e não essas tresloucadas de hoje, metidas a macho) já se levantou. Provavelmente está preparando o café.

O brunch de domingo é uma tradição na casa de Rubens, mas vem enfraquecendo. Seus dois filhos mais velhos, Rubão e Verinha já não moram com ele. Rubão se mudou para São Paulo e Verinha para os EUA, foi acompanhar o marido, sujeito macho, responsável, que, felizmente, deu à sua princesa o futuro que ela merecia.

Todo domingo Rubens culpa o governo comunista pela distância dos filhos, afinal, na época dele a nata carioca não precisava se mudar para longe dos pais em busca de oportunidades. Não fosse pela praga vermelha o brunch de domingo seria pura alegria. Ele nunca mais usou toda a capacidade da enorme mesa de jantar que adquiriu em doze prestações. Olha pra os lugares vazios, onde deveriam estar os filhos, o genro, a nora e os netos e conta os dias para o Natal, uma das raríssimas ocasiões em que a mesa fica um pouco mais cheia. Espera que esse ano Verinha possa vir do exterior, pois está louco para ver os netos. 

Verinha hoje cuida dos filhos e muito bem! Aprendeu desde cedo as prendas do lar e apesar de se formar em psicologia jamais exerceu a profissão. Rubens, sempre preocupado, teve o cuidado de preparar seu testamento e Verinha, agora casada, para o alívio de Rubens, contará com a supervisão do marido quando chegar a sua derradeira hora de passear em outra dimensão. A casa de praia, que hoje passa mais tempo fechada do que aberta, estará em boas mãos. Foi um ótimo investimento, custou barato e hoje vale o triplo. Seria perfeita, se estivesse em Búzios, mas a casa fica em Arraial do Cabo, balneário que hoje está lotado de "paraíbas" e ficou impraticável. Atualmente ele prefere frequentar a casa de um amigo em Búzios, obviamente.

Rubens levanta preguiçosamente, calça seus chinelos e desliga o ar condicionado. Sai do quarto climatizado para levar um murro de calor, afinal, o verão senegalês ainda não abandonou o Rio de Janeiro.

Como esperava, encontra a mesa pronta. Vera está na cozinha, preparando os ovos mexidos, enquanto Raul, o filho temporão, já está sentado à mesa, mas ainda não começou a beber seu suco de laranja. Sua marca preferida estava em falta no mercado e ele, agora, lê com desconfiança a embalagem daquela marca estranha de suco. No cantinho da caixa nota uma sentença:

"A Sucos Lindos é uma empresa adventista, que reflete em seus produtos a paixão de seus colaboradores pela moral, pelos bons costumes e pela família brasileira."

"Pena que não são católicos".

Raul é um garoto brilhante. Segundo o pai, deveria ter feito engenharia, mas preferiu processamento de dados. Rubens não compreende bem o que seu filho pretende fazer quando se formar. No fundo, nutre a esperança de que, depois de formado, esqueça dessas modernidades e vá trabalhar na mesma transportadora em que começou sua vida profissional. A empresa hoje é gerida pelos filhos do antigo dono, que, como Rubens tanto enfatiza, lhe devem muito e não hesitariam em arrumar uma vaga para seu filhote.

Todo homem precisa de uma profissão de verdade e Rubens tem certeza de que Raul, quando amadurecer mais um pouco, vai cansar de brincar com computadores e buscar algo sólido, seguro, que vá dar o sustento que sua futura família merece.

O brunch corre dentro da normalidade. Os ovos mexidos estavam uma beleza. Foram degustados com brioches fresquinhos, de uma nova padaria, distante quinhentos metros de sua casa. Estavam precisando de algo assim, afinal, a padaria tradicional do bairro anda muito mal frequentada.

"Culpa dos comunistas. Veja nosso bairro como ficou. Os favelados agora descem o morro, compram nos nossos mercados e comem do nosso pão."

A Pain Magnifique é um verdadeiro alento. O preço, que normalmente é o dobro da antiga padaria, compensa, pois a freqüência é comparável a Champs Élyzées!  A Pain Magnifique não serve média, não tem quentinha e tampouco mortadela. O presunto de parma, vendido a R$ 200,00 o quilo, foi o acompanhamento escolhido por Vera para os ovos.

Os croissants da Pain Magnifique são um caso à parte. Trazem a Rubens a melancolia de quem tem saudades dos anos dourados da Varig e das incontáveis viagens a Paris que fez durante os anos 80, época em que os aeroportos gozavam da mesma frequência seleta da Pain Magnifique. 

Rubens se atira ao jornal do domingo, enquanto Vera arruma a mesa e lava os pratos. Raul vai pro computador, o menino não sai da internet.

Rubens só lê o caderno de esportes e o segundo caderno. Desde 2002 que política o aborrece. Hoje se sente acuado, quando vê o que os comunistas fizeram com seu País. Tem saudade de todo o glamour, que tanto se falava, dos anos 50 e sente ainda mais saudade da ordem e dos bons costumes da ditabranda. Os militares só mataram terroristas e, afinal, se não fosse por eles hoje seríamos como Cuba.

A revista de domingo ele empresta para Vera, enquanto que o caderno de tecnologia deveria ser lido por Raul que, estranhamente, diz ler aquilo tudo pelo computador.

Vera, após terminar suas obrigações, senta no sofá, ao lado de Rubens. Ela não tem paciência para jornal, prefere ler a Caras. Como a revista possui mais fotos do que letras, ela rapidamente acaba sua leitura e liga a TV. Seu filho já ensinou como se grava programas nesse negócio de TV digital e ela agora, todo domingo de manhã, percorre uma verdadeira maratona de programas gravados. E! Entertainment Channel é um must, depois ela assiste ao programa do Amaury Júnior que, infelizmente, passa muito tarde durante a semana e a maratona termina bem a tempo dela acompanhar o programa da Angélica. 

Rubens já terminou o jornal. Ele agora compartilha a agenda cultural dominical de Vera. Ele aguarda o fim do programa da Angélica. A rotina diz que depois disso Vera vai ao supermercado e ele, finalmente, poderá assistir o programa do Garotinho, que trará as novidades do futebol. Ele não se importa em rever coisas que já leu no caderno de esportes, é sempre bom ouvir uma segunda opinião, isso quando Raul, indignado aparece na sala de estar.

Com seu Macbook Pro na mão denuncia em tom histérico que um professor de filosofia teria, em uma prova, chamado Valeska popozuda de grande pensadora. Não bastasse isso, a tal questão inclui trechos de uma das músicas da tal Valeska, que possui letras de baixo calão e muito sexo.

"O fim da picada!"

"É o que os comunistas estão fazendo com o País, meu filho, acabando com a nossa cultura."

"Pois é, pai. E o senhor viu? Aula de filosofia! Pra que isso?"

"Ora meu filho. Esses comunistas são assim. Pra tudo que eles fazem eles arrumam uma vaga para os companheiros. Aposto que esse professor de filosofia estava desempregado, afinal, quem arruma emprego filosofando, se não for naquelas faculdades de desocupados, como sociologia, ciência política e etc.? Desde quando política é ciência?"

"Isso é parte do plano deles. Vão deformando as pessoas desde a tenra idade. Em vez e ensinar os garotos a bater cimento, eles os ensinam a querer o nosso lugar."

"Fica tranquilo, pai. Detesto funk. Curto mesmo é hip hop e sertanejo universitário!"

Toca a campainha. Vera abre a porta para Anacleto.

Anacleto é um bom garoto, vizinho e colega de infância de Raul. Bem nascido, estudioso, o único problema dele é se vestir mal. O nome, de muito mal gosto, é uma reprodução da graça de seu avô, "pau de arara" que, em vez de beber cachaça e receber esmola, trabalhou duro e cresceu na vida. Anda sempre barbudo, com cara de vagabundo, mas essa garotada de hoje é assim mesmo, gostam do que é feio. 

Anacleto, naquele dia, rompeu os limites da tolerância estética de Rubens. Não bastasse andar como um mendigo, me aparece com uma camiseta com uma imagem do Che Guevara. Rubens olha para o garoto de soslaio e pergunta:

"Você é chegado em comunistas assassinos?"

Anacleto desconversa: "Ganhei de presente Sr. Rubens".

"Pois então jogue fora. Isso não é presente que se dê."

Rubens muda radicalmente de assunto. "Você viu esse absurdo Cleto? Funk, agora, é cultura?"

"Por mais que não gostemos, Sr. Rubens, é expressão cultural, sim".

"Ora, expressão de gente vagabunda, isso sim!"

"Mas o senhor não acha bom que as crianças, agora, tenham aula de filosofia?"

"Pra que isso? Escola pública tinha que ensinar as crianças a ser eletricistas, pedreiros, motoristas. Quem sabe assim eles parem de ser sustentados pela classe média. Esse negócio de filosofia deixa a paraibada folgada. Quem vai bater laje, se eles estiverem lendo?"

"Anacleto saca seu smartphone: "Não é bem assim, Sr. Rubens. Veja a resposta que um dos alunos do professor postou no facebook":

Rubens nem chega ao final do texto: "É disso que estou falando, quem é esse moleque pra dizer que os adultos se portam de forma infantil? Olha aí! Começou, está vendo? Esse aí já é um que vai viver dessa vagabundagem de filosofia."

"Mas o senhor leu o que o professor falou? A questão, na verdade era meramente provocativa, de interpretação".

"É uma provocação às pessoas de bem, mesmo! Um absurdo!

Anacleto muda de assunto: "Raul, vamos à praia?"

Rubens interrompe: "Ele não pode hoje, Cleto. Ficou de visitar a avó comigo."

Raul ia discordar, quando notou o olhar severo do pai e resolveu ficar quieto.

"Bom, então vou indo, antes que o mormaço chegue."

Anacleto se despede, sai da casa e Raul se dirige ao pai: "Pai, a gente não visita a vovó há anos!"

"E nem vamos! Sua avó está maluca e em boas mãos. Felizmente seu tio paga uma ótima casa de repouso. Só não quero mais você andando com esse garoto, ele é má companhia, aposto que já está na maconha!".

Mal sabia Rubens que era justamente Raul quem comprava os baseados para Cleto. Cleto, hoje, vai ficar careta na praia, pois Raul precisa visitar a avó.